sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

[Conto] O Labirinto

Este conto não foi escrito por mim, mas pela Ticiane Faria do blog Bibliophiliarium! Eu já havia lido e publicado aqui, no Fantásticos Mundos de Papel, um dos contos da autora, por isso achei que seria interessante publicar mais este, que é uma espécie de continuação do outro! Não se preocupem a leitura de "Até as histórias nunca escritas", não é essencial para o entendimento do presente conto, mas, se tiver interesse em ler mesmo assim, você pode acessá-lo clicando aqui. Espero que gostem tanto das duas histórias quanto eu gostei!

O LABIRINTO
por Ticiane Faria

A bibliotecária levou um susto quando a porta de dentro da biblioteca se abriu de repente e voltou a se fechar segundos depois com um forte estrondo, puxada de maneira brusca pela força do vento que trazia a iminente tempestade. Do teto, algumas gaiolas rangeram por conta da rajada indesejada, como se estivessem acabado de entrar em uma competição com o uivar do vento para saber quem era capaz de produzir o barulho mais sinistro. 

Do balcão, a bibliotecária sentiu um calafrio. Havia anos que parara de checar o tempo lá fora. Tivera o hábito de abrir as portas ela mesma, divertindo-se ao tentar adivinhar em qual lugar a biblioteca tinha ido parar. Sempre havia alguma dica óbvia ao redor, mas a bibliotecária preferia inspirar profundamente, absorvendo as histórias, que revelariam coisas não tão óbvias assim sobre o local. 

Mas a repetição desenfreada tende a transformar uma ação antes deliciosamente prazerosa em algo insuportavelmente tedioso, de forma que, atualmente, as únicas mãos que tocavam as maçanetas dos portões da biblioteca eram as mãos dos visitantes. 

Não tinha sido diferente agora, e a bibliotecária assumiu uma posição menos alarmada quando percebeu a presença de uma garotinha a poucos centímetros da porta. Furtiva como o vento, a jovem pensou e examinou melhor a visitante. Ela estava imóvel, seus olhos fixos nas entranhas da biblioteca, e seu casaco maltrapilho salpicado pelas primeiras gotas de chuva. 

A bibliotecária começou a bater com um lápis na madeira do balcão para ver se conseguia arrancar alguma reação da menina. Ela inclinou um pouco a cabeça, certamente porque ouvira o som, mas ainda era incapaz de desviar a direção do seu olhar. Finalmente o fez e fitou a bibliotecária com olhos arregalados. 

 Me desculpe!  disse ela.

Não eram nem de longe as palavras que a bibliotecária esperava, então ela perguntou, confusa:

 Pelo quê, exatamente?

 Invasão?  A menina passou a falar muito rápido, certamente constrangida. - Veja, a tempestade estava se aproximando e eu precisava arranjar um lugar para me proteger. Avistei isso aqui e juro que pensei que fosse uma igreja, e como o portão de fora estava aberto, entrei.  A menina suspirou.  Poderia ter velas, sabe... se fosse uma igreja, e eu ia poder me manter aquecida. Não tinha intenção de invadir sua... hum... propriedade. Me desculpe de novo.

 Não viu o letreiro na porta?  A bibliotecária ainda estava confusa.

 Eu não sei ler...

A bibliotecária sorriu em simpatia, mas também estava um tanto surpresa. Era verdade que a biblioteca recebia visitantes especiais, pois conseguiam enxergá-la enquanto muitos não conseguiam. Mas a jovem não se recordava de já ter recebido alguém que não soubesse ler. Pensativa, ela se abaixou para apanhar uma manta no compartimento interno do balcão e, quando voltou a se levantar, percebeu que a menina tinha se aproximado. 

Ela aceitou a manta e se despiu de seu casaco, cobrindo-se em seguida com o novo presente. O casaco ficou jogado no chão, exalando histórias que a bibliotecária conseguia captar. A menina era orfã, morava numa espelunca de orfanato que parecia ter mais insetos nojentos do que crianças. Não era a primeira vez que a garota fugia. O casaco foi pego discretamente das doações de uma igreja e, quando as histórias do antigo dono começaram a se sobrepor às histórias da própria menina, a bibliotecária desviou o olhar da vestimenta.

 Então, que lugar é esse?  a visitante perguntou, irrequieta, provavelmente se questionando o que tinha de tão especial no seu velho casaco que pudesse ter prendido tanto a atenção daquela jovem de cabelos escuros.

 Uma biblioteca.

 Ahrã, sei...

A forma como a menina expressou sua descrença e também o seu jeito de olhar para as entranhas da biblioteca sem dar sequer um passo para explorá-la fizeram com que a bibliotecária tivesse uma ideia do que se passava. Mesmo assim, ela resolveu perguntar, para ter certeza.

 O que você vê?

 Um labirinto.

A bibliotecária assentiu. Claro. Se a menina não sabia ler, óbvio que veria a biblioteca como um labirinto. Ainda assim, estava decepcionada. Primeiro porque ela mesma não gostava do labirinto e segundo porque tinha certeza de que a menina iria adorar se conseguisse ver as portas em miniatura. Ah, como era difícil comandar um local que tinha vida própria

 Você não precisa ter medo de algo que ainda não domina.  a bibliotecária resolveu dizer.

 Fácil falar  a menina respondeu, mas deu alguns passos em direção à entrada do labirinto, apertando ainda mais a manta em volta do corpo.

Ela não chegou a entrar. Observou as altas paredes feitas de pedras e plantas e estremeceu ao ver que algo tinha se mexido na escuridão das partes mais profundas do labirinto.

 O que tem aí dentro?  perguntou ela.

 Histórias.

A menina arqueou uma sobrancelha, de novo em descrença. 

 Sim, histórias. Histórias interrompidas, histórias que infelizmente não alcançaram o seu final feliz.

 Ah, então a minha deve estar aí dentro.  A menina deu um meio sorriso, tentando disfarçar sua tristeza com um humor irreverente.

A bibliotecária nada disse, e a visitante logo se sentiu mal pelo comentário. Esquecia-se de que não podia deixar a ingratidão da vida transformá-la em uma má pessoa. Passou então a pensar em algo para dizer que pudesse reparar a sua mancada. 

 Mas quem sabe se eu entrar aí dentro e encontrar a minha história, não poderei resgatá-la e dar a ela um final feliz?

A menina estava se sentindo muito orgulhosa de suas novas palavras, mas como a bibliotecária continuou em silêncio, a confiança da pequena visitante foi murchando aos poucos até que ela ouviu a jovem dizer:

 Bem... eu nunca achei a minha.

A garotinha olhou surpresa para a bibliotecária, que piscou para ela num ato de camaradagem que a pequena não encontrava frequentemente nas ruas nem no orfanato. Ela segurou a mão da jovem. Não eram parecidas fisicamente, e a menina não sabia o quanto  podiam ser parecidas interiormente, mas já tinham algo em comum, mesmo que nunca chegasse a conhecer qual era a história ou o mistério daquela moça. Não importava. Já gostava dela e dos seus cabelos escuros.

Elas ficaram assim, de mãos dadas e encarando o labirinto em silêncio, por um tempo, talvez até horas, até que a bibliotecária a puxou levemente para sair dali.

 Vamos  disse , você ainda não tem idade o suficiente para compreender o labirinto, e aposto que ele não é o seu lugar. A tempestade já deve ter passado e eu tenho outro presente para dar a você antes que vá embora.

Ela apontou para um objeto em cima do balcão enquanto as duas se dirigiam até lá. A menina tinha quase certeza de que aquele objeto não estava ali antes e não sabia dizer quem o colocara ali. 

 Uma gaiola?  ela perguntou um tanto desapontada quando chegaram mais perto.

 Vai te ajudar com as palavras. Mas não posso garantir que irá funcionar o tempo todo, especialmente se houver muitas pessoas ao redor.

Dentro da gaiola tinha um amontoado de letras que pareciam ser feitas de papel. A menina estava quase abrindo a portinhola da gaiola quando a bibliotecária deu um leve tapinha na sua mão, repreendendo-a.

 Não, não. Não abra. Você não tem ideia da confusão que palavras soltas podem causar. Apenas diga uma palavra. Qualquer uma. 

 Casa.

Ao som da voz da menina, o montinho de letras se remexeu enquanto dois a's e um c abriam passagem pelas demais letras e flutuavam acima delas. O s chegou um pouco atrasado, mas logo a palavra casa estava formada. A menina estava impressionada. 

 É assim que se escreve?  perguntou.

A bibliotecária fez que sim com a cabeça. A visitante agradeceu umas mil vezes, e então fez-se aquele silêncio que geralmente antecede uma despedida. Elas se abraçaram e a bibliotecária ficou observando enquanto a menina se dirigia até a porta, segurando a gaiola como se fosse um bichinho de pelúcia. Ela hesitou duas vezes, uma antes de abrir a porta e outra depois de já ter aberto, quando olhou para trás, um último vislumbre do labirinto, e acenou uma despedida para em seguida fechar a porta atrás de si e ir embora, levando seus presentes. 

A tempestade realmente tinha passado.

Um dia, a bibliotecária sabia que sim, aquela menina iria perceber que o seu novo manto tinha um bolso escondido. E ia achar ali dentro a sua carteirinha daquela biblioteca, com um nome que não era o qual ela estava acostumada a ser chamada, mas era o seu nome, mesmo que ela ainda levasse um tempo para descobrir isso. Então ela ia saber que sempre seria bem-vinda ali. 

Três presentes. Proteção, ensinamento e esperança. Ah, esperança. A bibliotecária voltou a olhar para o labirinto. Ela sabia que ali, por mais terrível que fosse, em algum lugar escondido sempre haveria uma saída. 

4 comentários:

  1. Oi oi, Ju! Obrigada mais uma vez pela divulgação! Fico muito feliz que esteja gostando dos contos! Muitos beijos! <3

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    1. Eu que agradeço por permitir que eu compartilhe seus belíssimos contos com meus leitores! Vai ter mais desses? Vou ficar esperando hein?
      Grande Abraço!

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  2. Tinha lido o conto e gostado muito!
    Achei bem criativo!
    Ah, da uma olhadinha neste post e responde lá: http://umavidachamadalivros.blogspot.com.br/2014/02/amizades-na-blogosfera.html
    Beijos!

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    1. Também amo os contos desta autora! Dei uma olhada no post e fiquei muito satisfeita de fazer parte da sua lista de amigos! Responderei o post assim que possível aqui no blog também!
      Agradeço pelo reconhecimento, sua amizade também é muito valiosa para mim!
      Grande abraço!

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