terça-feira, 14 de janeiro de 2014

[Conto] Até as histórias nunca escritas

Esse conto, que eu adorei, não foi escrito por mim, mas pela Ticiane Faria do blog Bibliophiliarium. Como eu gostei demais do conto, achei uma boa idéia dividir com vocês, espero que gostem tanto quanto eu gostei. E não fiquem com preguiça de ler não, ele não é tão grande assim, e vale a pena cada minuto perdido na leitura. 


ATÉ AS HISTÓRIAS NUNCA ESCRITAS
por Ticiane Faria


À primeira vista parecia uma catedral gótica, mas o letreiro perto da entrada arqueada dizia: "Bibliophiliarium: até as histórias nunca escritas". Uma biblioteca, talvez?, pensou o menino e a curiosidade o impulsionou a entrar. Ele atravessou a entrada, chegou a um balcão em passos silenciosos e observou a jovem figura da bibliotecária, que remexia em papéis envelhecidos com um sorriso à la Mona Lisa que nunca parecia lhe deixar o rosto. O menino pigarreou para indicar sua presença. 

 Bem-vindo!  disse ela após uma rápida avaliação do visitante.  Em que posso ajudá-lo? 

Ele tinha olhos inquietos que tentavam assimilar cada pequeno pedaço da gigantesca biblioteca. Parecia impressionado, assustado e contrariado, como quem luta para decifrar um enigma ou entender um paradoxo. 

 Onde estão os livros?  finalmente perguntou. 

A bibliotecária demonstrou ligeira afetação. Ajeitou os cabelos negros que lhe caiam nos olhos e voltou-se para os infindáveis corredores repletos de estantes vazias. 

 Você não os vê? 

O menino negou com um balanço de cabeça, tímido. Então a bibliotecária deixou sua posição atrás do balcão, pousou uma mão gentilmente no ombro do visitante e inclinou a cabeça para cima. Do alto teto da biblioteca pendiam gaiolas de variadas formas e tamanhos. Muitas. Formavam um mar que encobria toda a abóbada. Algumas rangiam sinistramente, e um bater de asas era sempre presente, mesmo que nenhuma ave pudesse ser vista. 

 Você deve ter muitos pássaros  comentou o menino, que também tinha olhado para cima. 

O sorriso da bibliotecária se alargou, mas ela negou com a cabeça, dizendo:

 Pássaros odeiam gaiolas.

 Então o que...?

– O que são livros, pequeno?  perguntou a jovem de repente, interrompendo-o.

 Histórias?  arriscou ele.

 E o que são histórias? 

Silêncio. A essa pergunta o menino não tinha uma resposta pronta. A bibliotecária começou a caminhas em direção aos corredores e fez um movimento para que o visitante a seguisse.

 Sentimentos. Sonhos. Esperanças  começou ela.  Histórias são tudo isso e muito mais. Por trás de cada imagem, objeto ou canção há uma história. Até as pessoas são feitas de histórias.  A bibliotecária fez uma pausa antes de continuar.  Histórias machucam, ensinam, transformam. São como o ar. Não podem ser vistas, tocadas ou saboreadas. Mas estão em todos os cantos, à espreita, invadindo corpos para enchê-los de vida. Ninguém vive sem histórias. 

A bibliotecária fez uma nova pausa. Girou nos calcanhares e fitou o pequeno visitante com os olhos cheios de expectativa. 

 Já consegue ver os livros?  perguntou.

O menino piscou, saindo de um rápido transe provocado pelas palavras da jovem. Ele observou as estantes com cautela, desejando desesperadamente que livros as preenchessem para que ele não decepcionasse a expectativa da bibliotecária. Mas não havia livro ali. Nenhum. Havia apenas... Ei, espera aí! O menino se aproximou de uma prateleira, observando-a minuciosamente.

 Portas? - perguntou.  São portas?

A bibliotecária assentiu.

 E para onde elas dão?

 Houve uma época que eu sabia de cor para onde cada uma delas dava. Já não sei mais. Surgem novas o tempo todo. Mas pode escolher uma e descobrir.

O menino sorriu. Já não parecia mais assustado ou contrariado. Passou a percorrer as estantes com uma ânsia infantil, procurando pela porta em miniatura que mais lhe chamasse a atenção. Alguns minutos depois já tinha a sua preferida. Com um assobio de aprovação, a bibliotecária puxou a portinha, como se retirasse um livro da prateleira e a portinha escorregou para o chão, projetando-se e aumentando de tamanho. 

 Histórias são como aventuras também... Sabe por quê?

O menino olhou da porta projetada para a bibliotecária. Sentia-se como um aluno aplicado que tinha feito a lição de casa, pois ele sabia a resposta.

 Porque precisam ser vividas!

 E compartilhadas  a bibliotecária completou.

De repente, ela tinha nas mãos uma das gaiolas do teto e a estendeu para o menino. Dentro da gaiola, como pássaros agitados, letras dançavam. Faziam um barulho muito similar a um bater de asas. E eram tantas que formavam um alegre e extenso redemoinho. O menino pegou a gaiola, sorriu para a bibliotecária e atravessou a porta, sumindo dentro dela. 

A jovem voltou ao balcão, cantarolando. Durante as horas que se seguiram, nenhum outro visitante apareceu e isso a deixou preocupada, mas não desanimada. Então, ela ouviu o barulho de uma porta batendo e soube que o menino estava finalmente de volta. Ele trazia numa mão a gaiola vazia; e na outra, um livro de capa vermelha. Depositou os dois objetos em cima do balcão. Estava cansado, mas satisfeito. 

 Então, como foi?  a bibliotecária perguntou, folheando rapidamente o livro escrito com as letras da gaiola. 

 Já teve que lutar contra um dragão?

 Tempos atrás, sim - respondeu ela, nostálgica. - Os marinhos são os mais ferozes.

Duas coisas passaram pela cabeça do menino. Primeiro ele quis saber mais sobre aquela bibliotecária do sorriso enigmático, que tinha um quê de heroína de tragédia grega ou de princesa amaldiçoada, ele não sabia ao certo. Mas esse pensamento foi logo suprimido por outro. Dragões marinhos?! Como se lesse os seus pensamentos, a bibliotecária disse: 

 Quem sabe fica para uma continuação? - e piscou para ele ao mesmo tempo que lhe entregava o livro de capa vermelha e um envelope azul pequeno.  Dentro do envelope está a sua carteirinha daqui. Tenho um pressentimento de que um dia vai voltar. E o livro... peço que dê para alguém que goste ou que o coloque entre os livros de outro biblioteca. Compartilhar, lembra?

O menino concordou. Pegou o livro e o envelope e se despediu cordialmente. Não queria ir embora daquele santuário, mas a bibliotecária tinha dito que ele voltaria. Ela dissera que era um pressentimento, mas soara como uma afirmação. E ele também sabia que voltaria. Voltarei amanhã, decidiu assim que deixou a incomum biblioteca para trás, já abrindo o envelope para conferir sua nova carteirinha. Estava surpreso por não ter havido necessidade de usar uma daquelas horripilantes fotos 3x4 que sua mãe o obrigava a tirar todo santo ano. A carteirinha era feita de um papel grosso e resistente e continha apenas o nome completo dele e, embaixo, a expressão Contador de Histórias

O menino não tinha a menor ideia de como a bibliotecária pudesse saber o seu nome. Ele olhou para trás, como se esperasse encontrar a jovem misteriosa na entrada arqueada, acenando para ele, convidando-o a voltar e nunca mais sair. 

Mas a biblioteca tinha desaparecido. 

2 comentários:

  1. Obrigada pela divulgação! <3 Um dia, eu ainda escrevo uma continuação :D

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  2. De nada! Eu que agradeço por me permitir compartilhá-lo! E quando a obra é boa, dá até prazer compartilhar, e o conto é ótimo (não é só puxa-saquismo, viu, leitores? Eu gostei de verdade!). Você não devia ter dito isso... agora vou ficar esperando a continuação!
    Grande abraço, Ticiane, continue com o bom trabalho no blog!

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